sexta-feira, 13 de março de 2009

Capítulo 23 do livro que estou a escrever

Resolvi postar este capítulo (o 23 de 57) do livro que escrevo. Ainda não foi revisto, por isso desculpem qualquer coisa... Se quiserem comentar, comentem...


Declinara todos os convites feitos por Alberto, Simone e Teresa para o jantar e decidira passar aquela noite só, no apartamento que iria herdar, a ouvir música, ver televisão e a vasculhar todas as gavetas existentes. Apanágio, o porteiro, indicara-lhe um supermercado nas traseiras do prédio, que ele achou facilmente. Demorou mais tempo do que o previsto ao fazer as compras que precisava, a comparar produtos, a descobrir mercadorias que em Portugal não existiam. A grande parte das coisas que comprara eram desconhecidas para si e, por via das dúvidas, trouxera um frasco de sais de fruta para o caso de haver um problema. Observava, discretamente, as pessoas que faziam compras, tentando descobrir semelhanças e diferenças. O impulso consumista, o prazer em comprar era o mesmo; no entanto os cariocas pareciam mais descontraídos, a começar pela forma como respiravam. Era engraçado observar o comportamento dessas pessoas que, apesar de distarem meio mundo das suas referências culturais, eram muito idênticos. Mas o que o perturbava mais ainda era o facto de encontrar as mesmas palavras escritas, mas com significados diferentes. Como por exemplo, quando pedira fiambre à empregada e ela não soube o que Miguel estava a pedir. Só quando apontou para o fiambre que conhecia é que descobriu que no Brasil, se chamava presunto. Ficou com medo de saber como é que o presunto se chamava ali.
Ao entrar no prédio, Apanágio chamou-o e informou-o de que enquanto estivera fora, um senhor procurara-o e deixara um envelope. Enquanto subia no elevador, curioso, Miguel abriu o envelope e viu que no seu interior estava uma folha de papel contendo dois endereços. O de Bruno, num lugar chamado Arpoador e o de Bárbara, num bairro chamado Jardim Botânico. Ele guardou a folha de papel, entrou em casa, deixou as compras na cozinha e foi ver o fim de tarde na cidade. Ficou uma imensidão de tempo a observar o trânsito nas avenidas, os aviões a levantar voo no aeroporto à sua esquerda, parecendo que iam colidir com o Pão de Açúcar e descrevendo uma curva apertada à medida que ganhavam altitude. O Rio de Janeiro foi-se iluminando e Miguel estava inebriado com a forma como estava a ser envolvido pela cidade. Tudo parecia perfeito naquele momento e ele estava satisfeito por ter feito aquela viagem, que se estava a revelar bastante surpreendente e agradável. Uma vez alguém lhe dissera que as coisas não planeadas eram mais saborosas e proveitosas do que aquelas que eram milimetricamente planeadas. Ele soltara-se numa decisão momentânea, instigado pelo espírito de aventura e, pela primeira vez desde que se viera embora do escritório onde estagiara, sentia-se pleno, tranquilo, esperançoso. Tinha medo que essa sensação terminasse assim que embarcasse no avião de regresso a Portugal, mas naquele momento ele queria preocupar-se em vivenciar aquele instante o mais intensamente possível.
Ainda debruçado na janela e observando os travestis que se começavam a fazer notar, pensou nos acontecimentos do dia. O passeio em Copacabana, a conversa com Bruno e a suspeita de que o pai era amante de Bárbara, adensado com a suspeita de que aquele apartamento onde ele estava naquele momento seria o local onde eles se encontravam. Não queria pensar muito nisso, era uma história que não lhe dizia respeito. Só lhe interessavam as histórias que o pudessem envolver a partir do momento em que aterrara, no dia anterior. Ficou impressionado com a quantidade de coisas que havia vivido em vinte e quatro horas. Essa é uma das vantagens de se estar de férias; parece que o mundo é mais excitante quando não trabalhamos. No entanto, ele sabia que isso era uma falsa ilusão. Miguel ficara muito tempo parado em casa e sabia o quanto isso lhe custara.
Depois de procurar na cozinha os utensílios que precisava para fazer uma massa com atum, sentou-se à mesa a ver uma pequena televisão que estava em cima do frigorífico e reconheceu alguns dos actores que naquela manhã estavam no Copacabana Palace. Aumentou o som e escutou a história que era narrada. A actriz que Bruno se esforçara por ignorar interpretava a personagem de uma ex-presidiária que depois de muito tempo na cadeia regressava para recuperar a fortuna que o seu irmão lhe usurpara, bem como o amor de seus filhos. Terminada a refeição e a telenovela, ele ficou um tempo, às escuras a observar pela janela da cozinha as traseiras dos outros prédios. Viu que no rés-do-chão de um deles funcionava um ginásio. Quando se cansou de vasculhar na escuridão, foi abrir gavetas. Naquela noite não encontrou nada de relevante, a não ser mais fotografias do pai. Folheou livros, leu frases soltas, ouviu música. Quando começou a ficar com sono, foi para o quarto e, escutando Tom Jobim em volume baixo e com o Pão de Açúcar iluminado à janela, adormeceu.
Acordou estremunhado com um telefone a tocar. Procurou no seu relógio as horas, mas com os olhos ensonados demorou um pouco a perceber que passavam das quatro da manhã. O telefone, na cozinha, continuava a tocar e ele levantou-se para o atender.
Apanágio, repetindo uma série de desculpas, disse que tinha um homem na portaria, que afirmava que Miguel o conhecia e se chamava João, que insistia em entrar.

7 comentários:

  1. JOAO RELAMENTE VC E UM TALENTO EU PODERIA LER E LER ATE ACABAR....PARABENS

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  2. João, meu caro, parabéns! Muito interessante a forma com que você prende o leitor, um texto rico em detalhes... gostei muito! Abração!

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  3. Minha Nossa Senhora , quem é o homem que chegou? O que ele quer? o Que vai fazer? E o pai ein? Morreu com a amante (me lembrei de um trecho pequenininho que voce postou no blogao)? Espero que termines o livro, consigas editá-lo pra eu comprar e ler todinho. Boa sorte. Voce também merece.

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  4. Meu caro João,
    gostei demais da riqueza de detalhes de tua narrativa, e de como tudo o que o narrador vê é devidamente filtrado pelo seu estado de espírito. Embora suas ações sejam as mais comuns e rotineiras, nos dão sempre a impressão de que, por trás dessa aparente calma, há algo ameaçador em gestação: esse mundo ordenadozinho não vai ficar assim por muito tempo: é o que tua narrativa nos diz, assim nos preparando para futuros acontecimentos. É só um amuse bouche, mas eu gostei demais, dá pra perceber que você é um escritor e domina a sua técnica. Fiquei com vontade de ler mais. Não esqueça de me avisar quando postar outro trecho.

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  5. Por alguma razão misteriosa - acho que por causa de um antigo blog meu, nunca divulgado, tive que assinar como Juvenal Antena. Mas, por favor, onde se lê Juvenal Antena no comentário ai em cima leia-se: AGUINALDO SILVA

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  6. João, também gostei muito. Tem uma leitura muito fluída e prazeirosa e deixou um gostinho a quero mais :)

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