segunda-feira, 30 de março de 2009

Capítulo 34

Para quem estiver interessado, só uma pequena introdução. Este foi o capítulo que mais tempo demorei a escrever até agora e tenho medo de ter errado e pesado a mão. Mais do que nunca, aceito todo o tipo de críticas, porque à medida que o livro avança, mais díficil fica a sua escrita. Neste momento já escrevi cerca de 2/3 do livro (este é o 34º capítulo de 57), que se traduzem em 155 páginas. Não vejo a hora de o terminar para o começar a rever.

Capitulo 34

Era a primeira vez que estavam a sós e os dois sentiam-se desconfortáveis e nervosos. Sentados nos sofás da sala inundada de sol, frente a frente, observavam-se enquanto buscavam um tema que rendesse umas horas de conversa. Teresa pensou que era muito mais fácil enfrentar aquele homem quando a sala estava cheia de gente, quando Miguel lhe fez a pergunta que ela sabia que ele lhe faria.
“Como era o meu pai?”
Teresa sorriu. Era uma boa pergunta para a qual não tinha resposta. Vivera vinte e cinco anos com aquele homem e não sabia como lhe responder a uma pergunta tão simples.
“Essa pergunta exige uma longa resposta.”
“Agora fiquei sem saber se isso é bom ou mau sinal.”
Ela não respondeu. Disse que ia buscar alguma coisa para eles beberem enquanto conversavam. Levantou-se e assim que virou as costas a Miguel desfez o sorriso. Ela podia dar a resposta que Luís merecia, mas sabia que essa resposta não ia agradar a Miguel. Por outro lado, o que é que ele queria ouvir? A verdade ou a mentira? Ou uma meia verdade? Entrou na cozinha, Maria Bethânia passava a ferro enquanto assistia um programa de televisão. Teresa perguntou se ela tinha algum suco feito, Maria Bethânia respondeu que fazia um num instante e que o levava até à sala.
“Eu espero.”
“Mas pode ir, que eu levo”, insistiu a empregada.
“Eu espero”, repetiu, firme, Teresa.
Enquanto Maria Bethânia descascava uma manga, Teresa aproximou-se da janela da cozinha e olhou o movimento na rua. Precisava de saber como ia falar sobre Luís e, principalmente, o que ia contar. Podia falar como os primeiros tempos foram maravilhosos e como ele se revelara um homem encantador. Fora tão envolvente que ela estivera disposta a abandonar o conforto da sua vida para viver ao lado de um homem que não tinha nada para lhe oferecer. Não se arrependia dessa decisão. Até ao dia em que ele chegou a casa diferente, apático e a olhar para Teresa de uma forma estranha. Agressiva. Teresa não tinha como saber que nesse dia Luís reencontrara Bárbara, o grande amor da sua vida, no movimento do centro da cidade. Naquela noite, Luís entrou com a respiração pesada, não olhou para Teresa e para os filhos e trancou-se no quarto, invocando uma dor de cabeça. Foi a partir dali que ele começou a mudar. A distanciar-se, a beber mais do que era normal e a evitar qualquer tipo de contacto físico com ela. Ao fim de algum tempo, Teresa teve a certeza de que ela tinha uma amante e teve que tomar uma decisão difícil. Ou confrontava-o com essa dúvida ou fechava os olhos e seguia a sua falsa felicidade, garantindo estabilidade emocional e um lar aos seus filhos. Como não era mulher de cultivar suspeitas, que normalmente se transformavam em monstros emocioanais incontroláveis, confrontou Luís, numa noite de Inverno, em que chovia torrencialmente.
Estavam os dois deitados na cama, ele lia, ela fingia que lia.
“Como é que se chama a tua amante?”, perguntou Teresa, rompendo com o silêncio chuvoso.
Luís olhou para ela, pousando o livro sobre as pernas. Percebeu, de imediato, o alcance das palavras de mulher, mas fez-se de desentendido.
“Não sei do que estás a falar.”
Teresa, que acumulava frustrações e desencantos há algum tempo, viu naquela pergunta uma cínica provocação e atirou com o livro que tinha na mão para a cara de Luís que, surpreso com a atitude da sempre tranquila Teresa, ficou imóvel. Ela voltou a repetir a pergunta e, desta vez, Luís pensou na resposta que teria que dar. Como demorou mais tempo do que deveria, a sua mudez foi a resposta que ela queria e foi o rastilho para novo acesso de raiva. Teresa levantou-se da cama e, despejando toda a tristeza, raiva e ressentimento, arremessou-lhe com tudo o que estava ao seu alcance. Quando um frasco de perfume passou a centímetros da cabeça de Luís, ele levantou-se e atacou-a, esbofeteando-a até se cansar.
Ela ficou deitada no chão do quarto, cada centímetro do seu rosto fervia. Queria chorar e gritar, mas não conseguia, chocada com o que tinha acontecido. Ele caminhou desorientado pelo quarto, acossado, mais preocupado com o facto de se ter denunciado através da ausência de uma resposta, do que pela agressão que cometera na mulher. A relação dos dois acabara de atingir um ponto de não retorno e não havia muito mais que fazer. A sua primeira reacção foi sair de casa. Abriu os armários, tirou uma mala e começou a enchê-la com a sua roupa, caoticamente. Teresa tentou levantar-se, mas o seu corpo, gelado, não lhe obedecia. Desistiu e ficou com o rosto colado ao chão, observando com os olhos rasos de água aquele homem que fazia as malas. Num fio de voz, disse:
“Sais de casa e nunca mais vês os teus filhos.”
Teresa, humilhada e ferida, decidiu que a vida do seu marido seria um inferno a partir daquele momento. Ele até podia não ser mais dela, mas se saísse de casa não ia ser de mais ninguém. Luís parou de atirar roupa para dentro da mala, olhou para o chão, encostou-se ao armário e começou a chorar. Gemia:
“O que fui fazer da minha vida?”
Ele chorou e quanto mais Teresa escutava as suas lágrimas, mais determinada se sentia em prolongar aquele momento. Sentia o sangue que saía do seu nariz e desejou que o nariz estivesse partido. Sentia dores no pescoço e visualizou os hematomas na sua cara.
“Eu sou a mãe dos teus filhos.”
Luís escondia a cara com as mãos, soluçava.
“Bates na mãe dos teus filhos e sais de casa?”
Teresa sentia o sangue que lhe escorria pela garganta e com a ponta da língua sentiu o coágulo que se começava a formar nos dentes.
“Isso não é coisa que um homem faça à sua mulher.”
Luís baixou as mãos e, transtornado e cabisbaixo, ajoelhou-se ao seu lado.
“Perdoa-me.”
“Como se chama a tua amante?”
“Eu não tenho amante nenhuma.”
“Claro que tens…”
Amedrontado, Luís tocou no ombro de Teresa que fechou os olhos, enojada com o seu toque. Mesmo sabendo que o marido tinha uma amante, ela preferia tê-lo ao seu lado e foi isso que lhe disse. Luís escutou as palavras dela sem pestanejar. Antes que repetisse que não tinha uma amante, Teresa pediu que não o fizesse. Disse que isso lhe doía mais do que as dores físicas que sentia. Pediu que ele a ajudasse a sentar, depois a deitar-se na cama. Enquanto o fazia, Luís quis explicar-lhe que aquela mulher, Bárbara, tinha sido o amor da sua vida e que se tinham separado por circunstâncias que, na altura em que aconteceram, estavam além do controlo deles, e quando se reencontraram, anos depois, ambos estavam casados. Pressentindo que Luís lhe queria falar sobre algo que não queria ouvir, Teresa exagerava os seus gemidos, pediu um copo de água para expurgar a boca de sangue, uma toalha para se limpar. Luís respondeu diligente aos pedidos de Teresa, esquecendo a intenção de contar a sua história, calando-a para sempre na sua boca.
Ele limpou-a, fez os curativos, chorou desculpas e arrependimentos. Ela, que se via de novo aos olhos do seu marido, gostava da dor que estava a sentir e bendisse cada agressão. Quando ele terminou, Teresa disse:
“Eu perdoo-te pelo o que aconteceu.”
Na manhã seguinte, antes que todos acordassem, Teresa viajou para a serra, onde os pais tinham uma casa de férias que estava fechada grande parte do ano. Ficou lá o tempo necessário para se recuperar dos traumas. Quando regressou à cidade encontrou um marido infiel, mas dedicado. Não se importava que fosse assim. O que interessava é que a instituição familiar conservava a sua apodrecida aparência feliz. Com o tempo, Teresa aprendeu a trabalhar os remorsos de Luís, que se multiplicava em demonstrações de carinho, esquecendo o sexo. Agora que ele morrera, não sabia porque durante tanto tempo mantivera activa aquela arena, hábeis as manipulações e activos os arrependimentos. Luís estava morto e Teresa esvaziava-se a cada dia que passava. Sabia que na noite da agressão o amor que existira entre ambos acabara e que se mantiveram juntos por medo das recordações.
Maria Bethânia entregou-lhe uma bandeja com copos e com o sumo de manga. Ela agradeceu e regressou à sala, com o seu melhor sorriso. Aquele português queria saber quem era o pai dele e Teresa ia dizer-lhe quem era o pai dele. Começou por lhe perguntar se ele conhecia aquela música do Tom, que se chamava “Teresa na Praia”; Miguel negou. Ela disse:
“O seu pai dizia que essa música tinha sido escrita para mim e que a tal de Teresa era eu.”
Miguel sorriu, sentando-se na ponta do sofá.
“Claro que isso era impossível…”
Servindo-lhe um copo de suco, disse que Luís fora melhor marido do que ela merecia. Contou que era um pai dedicado, apesar de ter uma relação conflituosa com João. Miguel quis saber mais sobre essa relação e Teresa, encolhendo os ombros e com um movimento de mão respondeu que sempre que Luís olhava para João lembrava-se do filho que tinha em Portugal e sentia-se culpado. E como queria afastar essa culpa, repudiava mais o filho, sentindo-se ainda mais culpado.
“Acabava por ser um ciclo vicioso.”
Para equilibrar o comentário que tinha acabado de fazer, Teresa desfiou incontáveis qualidades. Insistiu que Luís era companheiro, amigo, fiel, amoroso, preocupado, batalhador, optimista e por aí fora. Miguel sentia que Teresa não estava a ser verdadeira e observava que a construção que ela estava a fazer do pai não correspondia à realidade. Era, com certeza, o Luís que ela queria que ele tivesse sido. Ao segundo copo de suco, ele já não a estava a escutar, via apenas os movimentos dos seus lábios sem os associar às palavras que não interessava assimilar. Também Teresa não tinha a certeza absoluta do que estava a dizer, mas isso não a preocupava muito. Não podia era ficar em silêncio com aquele homem. Enquanto ela falasse evitava novas perguntas que poderiam abrir feridas que já deveriam estar cicatrizadas. Por fim, como uma torneira que se fecha, Teresa calou-se e Miguel despertou dos seus pensamentos, que naquela altura voavam sobre Lúcia. Ficaram, num silêncio desconfortável, a olhar um para o outro, para o chão, para os copos vazios. Como que para concluir o seu nervoso monólogo, Teresa disse:
“Sinto muito a falta do Luís e tenho pena que tenha acontecido o que aconteceu.”
Miguel cruzou as mãos sobre a barriga. Precisava de encontrar um pretexto para se levantar e ir embora, sem parecer indelicado.
“Pois foi…”
Teresa sorriu.
“Mais suco?”

6 comentários:

  1. Bem, João, a sensação que a gente tem ao começar a ler é a de que estamos pegando o bonde andando (devido ao fato de não termos lido desde o início da história) mas à medida que a leitura vai fluindo conseguimos embarcar no drama de Teresa, que é o ponto alto do capítulo. Você usou com precisão o recurso do "flashback" para nos colocarmos como espectadores da cena passada naquela trágica noite e então notamos que a partir dali tudo seria diferente. Sua linguagem é bastante formal, como normalmente são os romances portugueses, e o que notei de muito interessante é que você consegue transmitir a emoção dos personagens através da narrativa. A emoção é fundamental numa boa história e esta cena da briga da Teresa com Luís foi de uma densidade carregada de emoção, podemos visualizar a expressão de amargura no rosto da mulher.

    Agora, detalhista como sou, me permita apontar dois errinhos que notei, certamente cometidos na hora da digitação. Neste parágrafo:

    "Ao fim de algum tempo, Teresa teve a certeza de que ela tinha uma amante e teve que tomar uma decisão difícil".

    Onde lê-se "ela", não seria "ele"?

    E nesta frase:

    "...estavam além do controlo deles, e quando se reencontraram, anos depois, ambos estavam casados".

    Em "controlo" você certamente quis dizer "controle".

    Como você mesmo advertiu lá em cima, logo fará a revisão do texto e então os identificaria, mas como sou um tantinho intrometido, já me adiantei, rsrs...

    É isso, meu caro escriba, espero ainda ler este romance integralmente em livro, e devidamente autografado com a apresentação assinada por Aguinaldo Silva. Abraço!

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  2. Teresa da Praia, cantada pelo D. Farney, entre outros. Excelente leitura. Que a Deusa da Inspiraçao te acompanhe sempre e termines o livro! Boa Sorte.

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  3. Oi Kaiser Joao---meu imperador preferido é a primeira vez que eu li seu texto, nao sabia do livro...PARABÉNS; TEM POTENCIAL E CONTEUDO ...prende tambem e isto é legal, mas eu queria ter comecado desde do inicio assim nao ficava tao perdido com ambientacao de onde acontece tudo...
    ABRACOS E A FORCA NESTA PENA....

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  4. João, gostei muito. ;Mais uma vez o texto tem uma leitura muito fluído que nos mantém interessados. Não sei se é a primeira vez que Teresa aparece mas o recurso ao flashback para o momento da agressão e para as suas repurcussões permite-nos ver perfeitamente o tipo de casamento que este casal teve depois deste momento, com ela a fazer-se valer deste momento sempre na balança.

    É uma história que estou muito interessada em ler.

    Uma questão, onde diz
    "Teresa, que acumulava frustrações e desencantos há algum tempo, viu naquela pergunta uma cínica provocação"

    não seria "viu naquela resposta"?

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  5. João, meu caro, mais uma vez dou-lhe os parabéns! A trama permanece instigante, prende a atenção do leitor. Além disso você sabe muito bem usar a técnica, tipo o flash-back, que traz a quem está lendo toda a situação anterior, a vida que os personagens levavam, etc... Sem falar na carga dramática que está presente nos eu texto, que, mais uma vez você soube usar muito bem. Adorei. Quando der publique mais alguns trechos. Abração!

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